terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Algodões 2: abóboras, rebatedor

Até hoje me lembro do seu espanto quando olhou aquelas abóboras no chão. Um vegetal que dá no chão? Como se toda fruta tivesse que nascer em árvores, para cair na cabeça de alguém e provocar a inspiração para a ideia que vai mudar a história. A abóbora nunca mudou história alguma. Mas esteve na nossa. Naquele dia, eu me arrependi de ter ido com você a Algodões. Algo me dizia, e eu não quis acreditar, que jamais deveria ter ido com um sujeito que conhecia havia dois meses para um lugarejo do sul da Bahia. Eu, que não suporto nem um domingo a dois em Paquetá.

O convite para a viagem veio em um mate que tomamos na praia. Você cavou um buraco na areia, apoiou o copo. E me convidou. Bahia. Descanso. Paz. Nós. Dois. Eu sorri, tentei ser leve, mas sei que saiu forçado. Eu não sei sorrir amarelo, você deve ter percebido. Antecipei a viagem em pensamento e só sentia o medo de estar com você naquela cidade, longe de tudo, e sozinha; de não conseguir sair da cidade. Acima de tudo pesava, mas só descobri isso muito depois, não saber ao certo quem era você, apesar da nossa súbita intimidade para uma relação de apenas dois meses. Pensei tudo isso. E respondi: marca o vôo para a parte da manhã.
Engraçado como se confia em uma pessoa por pouca coisa. Eu confiava em você pelo seu gosto musical.
Como se pode ser tão idiota?

Olha ali a namorada do fotógrafo, dizia a produtora da equipe, lá vai ela com o rebatedor. Nos primeiros dois dias, eu fui a carregadora oficial de rebatedor. Devo a esse oficio o fato de, hoje, conseguir discernir as luzes, e apenas por isso não me arrependo.
Gosto de luzes, especialmente da que bate nas folhas da aboboreira, pela manhã. Há frutas, como as abóboras e os kiwis, que surpreendem ao serem abertas. Não se pode adivinhar como são por dentro, nem mesmo quando tocadas. Impossível imaginar, olhando por fora, a cor da polpa. Mesmo em uma foto que não esteja em preto e branco.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Algodões, 1, mas não o primeiro




Essa é a última parte do álbum. Já escrevi para todas as doze fotos. Essa era a última. No entanto, resolvi colocar logo aqui, no início, porque tenho certeza que essa imagem vai ser a primeira coisa que você vai ver. Estou a léguas de distância da Marquês de Abrantes, mas sei muito bem que você vai pegar esse embrulho, estranhar o volume, avaliar o peso no tato, com aquela sua balança mental que compara tudo com um kilo de açúcar. Inconclusivo, vai andar até a cozinha e abrir a geladeira, que deve estar vazia. Vai reclamar que não tem comida na casa, mas que inferno, logo quando eu tenho mais fome não tem nada para comer, ímã de geladeira não é alimento, você vai resmungar em voz alta, o embrulho na mão. Sei também que vai carregar o pacote de volta para a sala, sentar no sofá, o de dois lugares, e abrir. Duvido que você tenha mudado a posição do sofá, nesse tempo que passou. Continua do lado da janela, não é? Para você poder reclamar, logo de manhã, que bate muita luz ali. Duvido também que conseguido se organizar para comprar um vegetal qualquer, ou um pacote de Doritos, e colocar nessa dispensa.

Acho que daqui a pouco terei em mãos o AR, aviso de recebimento de Sedex dos Correios. Eu postei com aviso de recebimento, paguei um pouco a mais por essa pequena segurança. Fiquei na dúvida sobre postar com AR ou não. De que me adianta saber se você vai receber? De que me adianta saber como você vai agir quando receber? Os Correios teriam um aviso de aceitação? Um aviso de encantamento? Bem, acabei aceitando o AR, essa pequena tranquilização psicológica oferecida pelos Correios. Os carteiros batem palmas quando chegam correspondências, e agora vêm entregar direto aqui, na porta da choupana. Essa de palha, no meio da floresta, que retrato na última foto, a que você vê primeiro. Eu moro aqui. Sim, eu ainda estou aqui. Em Algodões.

Deixar alguém, ou alguma coisa, é muito diferente de abandonar alguém, ou alguma coisa.
A sua rollyflex, entretanto, você não deixou, nem abandonou. Você esqueceu.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Algodões, o início

Já há tempos tenho um projeto com uma amiga muito querida. Ela é fotógrafa, eu escrevo, daí juntamos o tico, o teco e os esmaltes e resolvemos fazer uma fotonovela. Ou pelo menos chamamos assim: fotonovela. Eis que um dia, chegando do trabalho, o porteiro me entrega um pacote. Mulher solteira suspeita de tudo, mais ainda de pacotes na portaria. Pode ser um presentinho ou uma dose de antrax. E, pior, o porteiro sabe disso, porque foi logo delatando: aquela sua amiga deixou aí.

O elevador demora pouco tempo para subir até o terceiro andar. Costumo tirar batom do dente nesse intervalo, quando há. Nesse dia, entretanto, dilacerei o envelope pardo, esperando qualquer coisa, um não-objeto, livro, geleca, chapinha, tudo, menos aquilo. Um embrulho de algodão. Tive que ser cuidadosa ao abrir o invólucro, pois o algodão, delicadíssimo, exigia um minucioso balé de dedos. Imersa na tarefa de descortinar o embrulho, senti que o elevador estava subindo para outro andar.

Disfarçar o meu êxtase para o vizinho foi bem difícil. As fotos que a Gabi me mandou eram lindas. Ela havia feito uma viagem para um lugarejo da Bahia chamado Algodões, lembrou do nosso projeto, mandou ver nas fotos. Pronto. Um passo dado. Agora a bola está com você, ela parecia me dizer, tão gentil quanto concreta.

Hoje revi as imagens e mais uns vídeos que a Gabi mandou. Vou escrever contos curtos, integrados em uma lógica sequencial, para cada uma das fotos. O formato foi eleito por conta de uma porção de coisas que pensamos que podem ser feitas com esse nosso trabalho.

Me desafio a:
> escrever.
> escrever direito.
> não ficar fazendo piadinha.

Remoí umas coisas cá comigo, buscando o que essas fotos me diziam. Daí vi:

Essa é uma história de uma mulher que vive a separação, geográfica e definitiva, de um homem que ela ama. Ela está na Bahia. Ela gosta de escrever cartas.

Essa história começa daqui a pouco.

Algodão é macio, mas impede a visão.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Ontem eu tive a conta fraudada. Lembrei de você. Achei que merecia um presente por ter ficado calma e não ter berrado com a atendente do telemarketing e não ter esmurrado a minha gerente. Me presenteei com um café com bolo de laranja, e você me acompanhou. Acho que gostou do bolo, você, que também prefere os doces de frutas. Lembrei das pequenas coincidências. Lembrei das frutas. Dei um jeito de pagar a conta bancária que estava devendo, mesmo com toda a problemática da fraude, e achei que você riria da minha incapacidade burocrática. Mais tarde, já estava em casa e fazia algum frio, vi mais um daqueles vídeos sobre como aprender a tocar violão. Aprendi alguns acordes. Não sei dedilhar. Lembrei que você toca há tanto tempo, e nunca te perguntei como faz, e deveria perguntar agora que estou envolvida com isso, mas agora já não dá mais, eu tenho vergonha de ligar, eu tenho vergonha de mandar mensagem, eu só penso, só penso, nao faço nada. Aí sobrou cachorro-quente aqui em casa, da festa que fizemos, comi e ainda estava gostoso, fica melhor depois de dormido. Fiz uma to- do-list para me achar atarefada. Quando a tarefa que cumpro, há dias, a única, é esperar um apito vindo de qualquer um dos aparatos telefônicos que me cercam. Inveja dos tempos do sinal de fumaça, que vinham devagar e nebulosos.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A gente dormia achando que o dia seguinte não era amanhã, e sim o futuro.
Isso disse o Bertulocci no vídeo que acabei de ver.
Acho que hoje acordei assim.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

37

Aqui em Buenos Aires há aqueles ônibus com bancos nos dois sentidos. Ou seja, muitos passageiros viajam olhando para o sentido em que anda o ônibus, para a frente. Outros viajarão de costas para o destino, tendo à sua frente apenas o que já passou.

Hoje, por conta de diversas maluquices, passei cerca de 5 horas em meios de transporte. Peguei metrô, trem, remis de favela. Voltei. Tomei um banho. Andei a pé (meu meio de transporte favorito). Já no meio da tarde, precisei pegar um ônibus para ir a Palermo, o 37, velho conhecido, que tem parada na Callao. Dei uma corridinha pra alcançar o carro, que estava meio cheio, com gente de pé, mas sem muita acotovelação. Eu não curto viajar nos bancos que andam pra trás, por uma questão de superstição (agnóstico é muito supersticioso). Mas a minha superstição nunca é maior que a minha preguiça de ficar em pé.

Não tinha andado nem duas quadras quando uma senhora saltou e vagou um banco, desses de costas. um assentinho só, solitário, sem gente ao lado, ficava perto da máquina de pagar. Me acomodei no banco. O percurso até a Plaza Itália levaria cerca de meia hora, no mínimo.
À minha frente, eu via todo o caminho por onde o ônibus já tinha andado. Enquanto o resto dos meus companheiros olhava o que estava por vir, eu me detinha no que havia passado. E mirava de novo, querendo ver, querendo marcar, querendo nunca mais parar de ver, e querendo que nada nunca mais passasse. Os prédios, as varandas, as pessoas de sobretudo. A música tosca, o mau-humor, eu revia tudo com ares de novidade, pedindo pro meu cérebro registrar com carimbo de boi cada momento, cada curva, cada pessoa, cada cheiro, cada paisagem.

Atrás de mim, o motorista me levava pra algum lugar que eu não podia ver; à minha frente, eu via tudo o que já tinha sido.
Estava me despedindo.
Minha despedida é um carimbo do olho.
Perdi o ponto. Percebi quando vi a Plaza Itália ficando pra trás - quer dizer, no meu caso, mais pra frente que as outras coisas. Desci.
Só fiquei sem saber para onde o motorista, ao final de tudo, ia me levar. Mas isso, acho que não dá pra saber nunca. Sabe como é. Na verdade, estou sempre no banco de costas.

domingo, 22 de maio de 2011

- Amo você a ponto de matá-lo a facadas.
- Não use a faca, prefiro morrer estrangulado.

Um pequeno diálogo do Império dos Sentidos que estava no meu caderno vermelho.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Blanche

Assim Tennessee Williams descreve a beleza de Blanche, na primeira cena em que ela aparece, na peça Um bonde chamado desejo:

uma beleza sensível que sabe fugir das luzes cruas.

*
Ei, seu Teneçí, se fizermos uma limpeza de pele, será que rola?

domingo, 1 de maio de 2011

Julia

Início da tarde, no apartamento de Julia. A Julia que eu inventei pra ser ex-namorada do Miguel. O Miguel que eu inventei pra protagonizar o meu roteiro. O roteiro que eu inventei para alguma coisa que não tem por quê. (Porque toda brincadeira, quando é bacana, sempre termina no "não sei porquê").

JULIA
Presta atenção. Vou começar o tour. Bem-vindo, senhor Miguel. Você está na porta de entrada, adentrando (gostou do adentrando?) a sala do apartamento. Tem bastante luz, e eu gosto sala com luz, um sofá, uma TV e... vamos pro corredor. Tchan! Aqui é o meu quarto. Meio barulhento, tá dando pra escutar? Pra quem saiu daquele silêncio, imagina a tortura. Aqui tem carro passando e um ponto de apoio da companhia de garis da cidade. O armário, saca só, é bem grande. Mas eu nem precisava. Hoje eu sou uma mala e meia: sou algumas roupas, meus livros e um computador. Eu sou isso. E gosto de ser isso, pouca coisa. Eu cabendo em mim. Olha só que legal. E nem sou budista. E aqui é o meu novo banheiro. Que tem... uma banheira. Uma banheira, Miguel. Caraca!

Nunca poderia imaginar que ia desfrutar de uma antes de virar uma velha com a coluna entrevada cujos netos dão banho de banheira para rememorar o que é uma piscina. Uma banheira! Na minha casa! Só tinha ido em banheira em hotel. Quer dizer, em motel. Olha como é estilosa. Azul. Já testei a água, sai bem quente, dá pra tomar aquele banho fervente. Tá dando pra ver tudo pela webcam? E o banheiro ainda tem essa janela. Janelaço, né não? Vou abrir pra você ver. Dá pra rua, eu tomo banho vendo uma porção de prédios. E ainda tem outra coisa. Espera aí que vou correr pra te mostrar.
(Julia abre um janelão)
É a varanda. Daqui da minha varanda eu vejo uma porção. E vejo muito fio também. Aqui é bem alto. Paisagem suja. Cinza. Mas, quando eu estou aqui, só consigo ver as varandas. Acho tão bonitinho, esse enfileiramento de sacadas. Tem uma ali ó, vou apontar a câmera pra lá, é incrível, mimosa, contida, pequena, cheia de plantas. E, ao seu lado, uma esculachada, que faz as vezes de varal. Sabe que, depois de um tempo, eu sinto falta de olhar pra cima e ver as montanhas da nossa cidade. Mas aí eu aprendi rapidinho a me despistar. Finjo para mim mesma que cada varanda dessa é uma montanha. Aí eu estou no Rio de novo. Uma varanda, uma banheira, um punhado de livros, roupas, computador. Miguel? Tá aí?

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Em Buenos Aires, eu caminho olhando pra cima.
(E ando vendo muita varanda. E muita coisa nas varandas)

o maestro

A orquestra estava em silêncio. Todos tinham afinado os seus instrumentos. Músicos e musicistas de preto: os homens de fraque, as mulheres em lindos longos com detalhes brilhantes, eram cerca de cem os que aguardavam a chegada do maestro.

O maestro estava nervoso, mas pisou firme no palco quando entrou. Se acreditasse em astrologia, diria que estava em seu inferno astral; mas achava tudo isso uma baboseira. O teatro cheio, a batuta na mão, os mais de cem músicos, ele era o maestro, era poderoso de novo.

Ergueu a batuta. Firme. A primeira nota, do cello à sua esquerda, estava por vir. Não veio. Não veio o violino, não veio a clarineta. A primeira cadeira rangeu o chão. Era um violoncelista, que deixava o palco. E assim, em uma sequência de dominó, um por um, todos os músicos da orquestra deixaram o palco. Cadeiras tocaram o seu arrastar; sapatos tocaram pisadas fugazes; um ou outro murmúrio; saltos quicando; portas de coxias fechadas.

O maestro sozinho, a batuta em riste, para uma orquestra que se foi.

*
(Ontem minha mãe me narrou mais ou menos essa cena, que aconteceu em um concerto ao qual ela tentou ir. A cena ficou martelando na minha cabeça até agora. Adorei a idéia da orquestra dispensando o maestro. Escrevi pra tentar me livrar da cena. A ver se consigo. Se não der certo, como uma empanada.)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Como matar um mosquito

Gente que mata mosquito sem bater palmas. Sem fazer barulho.
Gente que mata mosquito no silêncio,
capturando com uma mão,
envolvendo-o com todos os dedos.
Depois abre a mão devagar, e checa.
Lá está o inseto, esmigalhado entre as linhas de uma palma
que cigana nenhuma leu.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

May I feel

Cummings é grande. E escreveu isso aqui, ó:


may i feel said he
(i'll squeal said she
just once said he)
it's fun said she


(may i touch said he
how much said she
a lot said he)
why not said she


(let's go said he
not too far said she
what's too far said he
where you are said she)


may i stay said he
(which way said she
like this said he
if you kiss said she


may i move said he
is it love said she)
if you're willing said he
(but you're killing said she


but it's life said he
but your wife said she
now said he)
ow said she


(tiptop said he
don't stop said she
oh no said he)
go slow said she


(cccome?said he
ummm said she)
you're divine!said he
(you are Mine said she)

domingo, 17 de abril de 2011

Como todas as pessoas que, de algum modo, vivem de ter ideias, eu tenho um caderninho. Depois de tentar dividir as seções por temas, por trabalhos, por situações amorosas e o escambau, percebi que, para uma pessoa completamente desordenada como eu, o melhor seria separar o caderninho por datas. Assim que pus meus pés na capital argentina, abri uma parte. Dobrei uma pontinha de uma folha - veja como é fácil abrir um espaço na vida - e escrevi, em garrafais vogais: Buenos Aires.

Aqui estou.

Meu método de caderninho funciona assim: anotar o que passa na cabeça. Anotar uma palavra. Anotar algo ouvido. Anotar uma besteira pra completar depois. Anotar. Minha parte Buenos Aires começa com um punhado de sensações físicas da cidade: a arquitetura, as ruas, tudo muito diferente do meu porto natal. Depois, caminho por frases que escutei, li, inventei. Mais recentemente, pensatas sobre o que é ser e querer ser um estrangeiro.

Algumas delas. Sou estrangeira porque:
- Não sou nativa da língua. Mesmo que me comunique bem, me delato em uma frase.
- Deixei de ir a uma festa porque cheguei no lugar e não entendi que aquilo podia ser uma festa.
- Tenho que me apropriar dos lugares, torná-los meus. A calle Ayacucho é minha. O bilheteiro do metrô é meu amigo.
- Porque eu vejo diferenças o tempo todo. Mesmo que não queira.
- Porque tenho um espanto por dia, mesmo que pequeno. Se não tiver eu forjo.
- Porque adoro me espantar com as coisas.
- Porque vim aqui pra me espantar.
- Porque estou sempre fora.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Na biblioteca - 1 de muitas

- o cara ao meu lado, na biblioteca, apoiou o seu livro em um pano. Lê com uma voracidade absurda, imerso no papel, e faz um movimento contínuo com a cabeça. Ah, que curiosidade eu tenho em saber o que ele está lendo. Ele parece rezar. Corpo pra frente e pra trás. Eu devia estar me concentrando aqui, mas já escrevi uma cena, me esmerilhei, ficou bom, e estou na pausa.

Vou fazer um versinho, então. Sobre uma revisora apaixonada.


A revisora apaixonada

Meu amor
não me repudia
só quero corrigir seu cê cedilha

- E esse outro maluco mexendo no celular? Saco. Biblioteca é um antro de desordem. Opa, o cara da suposta bíblia levantou. Vontade de ir lá ver o que é. Opa, meu vizinho já foi. Ele está bem vendo o que é o tal livro. Ah, perverso. Com aquela cara de santo, lendo de olhinhos fechados, estava bem de olho no leitor-rezante. Lembrei de um verso do Quintana.

Mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer.

Fim desse capítulo.

Desculpa qualquer coisa

Hai-kai do bolado antecipado:

Então tchau,
estou indo,
e desculpa qualquer coisa

quinta-feira, 10 de março de 2011

Minha letra predileta no idioma espanhol é a Ñ.
Ñ, de cariño.
E de ñaca, uma palavra que acabou de existir. Importei.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Epistolar

Querido assaltante,

eu queria te dizer que estou há uma hora e meia chorando por sua causa. Que estraçalhei os vidros da janela por sua causa, que joguei todos os meus papéis no ar e rasguei vários escritos por sua causa. Você, que, imagina, só queria o seu próprio bem, causou a minha desgraça. Me joguei no chão e não consegui levantar porque você existe, solucei no tapete da sala por sua culpa, fiquei nua e não consegui tomar banho por causa da sua passagem na minha vida. A você dedico todo o meu ódio. Você vai morrer.

Eu não tenho mais nenhum documento. Não tenho mais nenhum número que me represente. Todos os papéis que atestam a minha identidade estão em seu poder. O que você teria feito deles? Recortou o retrato, colou na parede? Fez sopa de letrinhas com a identidade? Vendeu? Há alguma outra de mim por aí? Eu vou virar uma traficante de armas, uma vendedora de rins? Por sua causa, por causa da sua indignidade, dois amigos terão que ir a um orgão do governo, veja só, dizer que eu sou a Clara. Eu mesma terei que testemunhar a meu favor, dizer que eu sou eu, que tenho esse nome, que nasci naquela cidade, quando nem ouso ter essa certeza. E, por sua culpa, agora estou limitada a fazer um único trajeto na vida, o de volta ao meu país.

Você me roubou o espaço, seu merda. Você me roubou muita coisa. Mas você não me roubou as pernas. Muito menos a cabeça.

Eu sonhei com você na noite passada. Eu não sabia que você existia, mas sonhei com você. Tenho sonhado muito aqui nessa cidade, e na noite passada acordei com o meu próprio esforço para berrar. Estava quase de pé. Eu não costumo sequer me mexer dormindo, e essa noite não só falei, mas, sim, berrei. Era a mesma sensação de perigo iminente que você me faz sentir agora, e que me impede de sair à rua, por puro pânico.

Você não é só você. Você são muitos. Você vai morrer.

Eu nunca vou saber quem você é. Você vai estar em todas as esquinas que eu cruzar, em todos os ônibus que pegar, em cada estação de metrô, entrada de teatro, elevador, no apartamento de cima, no sussurrar ao lado. Vou te agredir todos os dias. E vou te imaginar muito tempo. Agora, por exemplo, te imagino com a cabeça na guilhotina. É tão delicioso pensar nisso. Li outro dia que um líder rebelde de outrora havia sido condenado à morte por esquartejamento com cavalos. Isso mesmo, cada cavalo puxando uma parte do corpo. Esquartejado por cavalos. Acho que algo por aí seria mais adequado a você.

Vou te odiar sempre.
E você jamais me impedirá de nada.

Att,

Assaltada, mas viva.
Que mediocridade.

terça-feira, 8 de março de 2011

Apanhar e praticar

Momentos de inconformismo profundo aqui na minha varanda me valem um ou outro parágrafo.

Não entendo quem "apanha" chuva. Coisa mais gostosa é isso de pegar chuva. Deixar molhar, bem clichê, bem romântico, sentir o pingão grosso pesar quando estala na cabeça. Apannhar chuva? Como se fosse um chicote no lombo? Minha total discordância. Ou se pega chuva, ou abre um paráguas. Apanhar: sou contra, mesmo em casos molhados.

Preços praticados: outra expressão ininteligível. "O Brasil pratica preços muito altos." Não tenho nenhum comentário econômico a fazer, mas, veja bem, praticar está mais pra frescobol do que pra preços. E frescobol é algo muito sagrado para se confundir com questões monetárias dantescas.

Com isso, dou por encerrado o protesto.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Nota oficial

Cumpre informar que o Uruguay é a república com o litoral mais sem caixote do cone sul.

Aqui nessa cidade existem fiambrerias, lojas que vendem queijos, presuntos e afins. Coisa rara no Rio, em que os mercados há tempos reúnem o que antes se dissipava em pequenos açougues de bairro, delis, armazéns.
Ontem, eu estava na vitrine de uma fiambreria, exposta junto com nacos de carne, pedaços de queijos, umas linguiças.
Um cliente se aproximou. O vendedor, no balcão, colocou ordem na fila e atendeu o sujeito - que bem podia ser uma mulher, não lembro bem, não havia ângulo para ver e o barulho dentro da vitrine é grande. Eu estava ali, quieta, no meu papel de Clara-presunto, as pernas nuas, os pés descalços. O vendedor ligou a máquina de corte e abriu a porta da vitrine.
Eu não sabia o que o cliente havia pedido.
Então acordei.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

É proibido nos esquecer, dizem as faixas.

Gosto de ver a concentração para piquetes no metrô. Sob a terra, são só homens comuns que portam bandeirinhas. Em frente à casa rosada, se transformam em militantes com passado, insatisfações e desejos. Destemor.

Aqui eles aprenderam que cinco homens são capazes de fechar uma rua. Mesmo quando não é carnaval.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Diferenças

Golpeie a porta e será atendido.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

The End

São Paulo, nunca vi acabar.
O Rio, mais ou menos.
Mas Buenos Aires tem fim.
Senta de frente pro rio e olha: ali do outro lado já não é mais Buenos Aires.
Bate um alívio ter final. Todas as cidades deveriam ter final assim.
Sobem créditos.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Descarrilhar

Hai Kais ruins e irresponsáveis, porque o negócio é descarrilhar.

Parillada

Céus, como é divertido
ter um garçon
como amigo

*

Paixão nipônica

Por mais que te ame
sua cama
é de tatame

Ruídos

Um trem passa. Um homem grisalho, que está em uma rua sob o trilho do trem, protege os ouvidos ao escutar o estrondo e grita: meu deus! Essa é a primeira cena de O último tango em Paris. E é mais ou menos o que tenho vivido por aqui. Só que não tapo os ouvidos.
Estou especialmente sensível a barulhos, ruídos, sons. Tudo me desperta a atenção. É uma sensibilidade extra, que jamais tive. Quando era criança, passava na TV a propaganda do Sonic 2000, um aparelho auditivo. Aparecia uma velha decrépita, colocava o aparelho e falava: com Sonic 2000, posso escutar o barulho de uma agulha caindo do outro lado da sala! Eu estou assim.
Vou fazer uma lista dos principais barulhos que escuto aqui:
- talher batendo
- porta de casa no vai e vem
- vizinha mexendo no varal
- carros hesitantes entre dar a largada ou não
- homem da dedetização aplicando o fumigador
- cravinho explodindo
- bip
- de donde sois?
- bip
- x (x é quase um trem)
- calor (sim, calor faz barulho)
- risadinhas baixas (não ouvi nenhuma alta)
- unha do pé crescendo
- pro no tienes accento brasileño
- bip
- protesta!
- contra el govierno!
- caminhão de lixo
- tango ao fundo
- bip

domingo, 30 de janeiro de 2011

Varandas

Grande erro nunca ter tido uma varanda. Grande erro nunca ter tido uma varanda no sétimo andar.
Essa varanda é antiga, como o prédio. Pequena, com um gradil geométrico - mas de ferro, e não desses laminados modernosos. O chão é de lajotas avermelhadas. A porta de entrada é de correr, mas mal corre. E eu gosto que seja assim, meio emperrada. Daqui vejo a rua, com seus bolos de sacos de lixo dominicais. Daqui vejo a caquética janela do meu vizinho, unidas uma parte a outra por um fio elétrico velho. Daqui reconheço calcinhas gigantescas no varal de chão da vizinha, que usa a sua varanda para secar roupas. Daqui escuto mamãe me chamando lá de dentro.
- Você já comeu? Não estava com fome?
- Mãe, o que você está fazendo aqui? Eu estou sozinha nessa cidade. Já não te disse isso? Estou sozinha. É uma questão de lógica. Você não pode estar aqui. Você não está aqui.
Correm uns fios elétricos pela parte externa do prédio, e esses eu também vejo daqui da varanda. Os carros lá embaixo passam como se quisessem correr, mas algo os aprisiona. As leis de trânsito, talvez. Mas só talvez.
- Está na mesa.
- Não está. Você não está aqui.
Olho para os outros prédios, as caixinhas quadradinhas, e vejo as outras varandas. Quase todos têm varandas. Balcon, como se diz por aqui.

O prédio, uma caixa. A varanda, uma saída para o respiro. Já reparou em gente saindo de casa e entrando na varanda? Mal pisam na varanda, aquela saliência aérea, as pessoas costumam buscar algo com o olhar - uma nuvem, um carro mais apressado, um pega ladrão, uma nuvem no céu. Mal saem na varanda e gesticulam diferente, espreguiçam, se liberam de alguma coisa.
A varanda é o pequeno espaço em que se pode criar. É por isso que estou nela agora. E vou varandear por muito tempo.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Bs As me dá boas vindas

O bêbado rastejante não me viu. Eu queria que ele tivesse me visto, mas não viu. Ou, se viu, não vai lembrar. Havia acabado de chegar e, faminta, procurava nos arredores da Ayacucho um restaurante decente para comer. A fome me roía as tripas, mas fui capaz de esquecê-la ao ver os muros das ruas, as placas, ouvir aquela música diferente de Buenos Aires. E um calor que chega a ser elegante, posto que não é esbaforimento. Foi antes de chegar na Corrientes que vi o tal bêbado. De tão podre e trôpego, estava sendo carregado por um amigo. Aliás, não parecia um amigo, mas um solidário de meio de rua - adoro os solidários anônimos, essa gente que ajuda os outros no meio da rua, a troco de nada. Nunca consegui ser uma.
O sujeito era velho, meio barbudo e grisalho. Começou a procurar algo no bolso. Tateava a calça com a mesma sofreguidão com que caminhava, e eu fiquei com medo. Fiz um cálculo rápido: se fosse um assaltante, havia grande chance de ser eu a vítima. Mulher, sozinha, sabe como é. Ele certamente estava tateando a calça em busa de um estilete, uma faca, uma arma pequena. Me afastei.
Já estava alguns passos distante quando escutei o som. O sopro de uma gaita. O trôpego conseguiu tirar do bolso uma gaitinha e soprar. O cara tocava com a força e o encanto que suas pernas jamais voltariam a ter. Ele executou toda uma música, inteira, sem erros. De pé, ao lado de uma árvore. Ele não tinha força para mais nada. Só para aquilo.
Agora, aqui no sofá, lembro de um ensaio que acabei de ler e fala sobre um pianista completamente apático, que se transforma completamente ao ter na sua frente o seu instrumento. Quantos de nós, completamente apáticos, nos deixamos transformar apenas em determinadas situações? Mexo no travesseiro. Amanhã, quem sabe ele não está lá de novo. Bêbado. O gaiteiro da Ayacucho.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Dylan, por Hammil

Fiz uma coisa antiga: li um encarte de CD. Um texto do Pete Hamill em um encarte de um CD do Bob Dylan. Gostei muito e traduzi um pedaço (traduzir não é a coisa mais simples do mundo). O texto do Hamill fala sobre como, na turbulência dos anos 60, o Dylan conseguiu fazer uma poesia diferente, simples, verdadeira. E como sua arte resistiu ao tempo, por um motivo único: é bonita. Aqui vai um pedacinho do texto do Hamill. E viva Dylan e as respostas que sopram ao vento.

*

Pintores deixaram os cavaletes para rabiscar a sua inocência em paredes e manifestos; romances serviram como quartos arrumados para a ideologia.

Pobre America. Terra em que os poetas morreram.

Exceto Dylan.

De todos os nossos poetas, Dylan foi o que melhor pegou o mar turbulento e colocou em um copo. Desde cedo, ele nos avisou, ele nos deu voz, ele disseque a chuva pesada ia cair.

Então esqueça os intelectuais que reduzem a pó as rimas de Dylan. Lembre que ele nos deu voz. No tempo em que a nossa inocência morria para sempre, Dylan transformou esse momento em arte.

O milagre é que ele sobreviveu.