quinta-feira, 26 de maio de 2011

37

Aqui em Buenos Aires há aqueles ônibus com bancos nos dois sentidos. Ou seja, muitos passageiros viajam olhando para o sentido em que anda o ônibus, para a frente. Outros viajarão de costas para o destino, tendo à sua frente apenas o que já passou.

Hoje, por conta de diversas maluquices, passei cerca de 5 horas em meios de transporte. Peguei metrô, trem, remis de favela. Voltei. Tomei um banho. Andei a pé (meu meio de transporte favorito). Já no meio da tarde, precisei pegar um ônibus para ir a Palermo, o 37, velho conhecido, que tem parada na Callao. Dei uma corridinha pra alcançar o carro, que estava meio cheio, com gente de pé, mas sem muita acotovelação. Eu não curto viajar nos bancos que andam pra trás, por uma questão de superstição (agnóstico é muito supersticioso). Mas a minha superstição nunca é maior que a minha preguiça de ficar em pé.

Não tinha andado nem duas quadras quando uma senhora saltou e vagou um banco, desses de costas. um assentinho só, solitário, sem gente ao lado, ficava perto da máquina de pagar. Me acomodei no banco. O percurso até a Plaza Itália levaria cerca de meia hora, no mínimo.
À minha frente, eu via todo o caminho por onde o ônibus já tinha andado. Enquanto o resto dos meus companheiros olhava o que estava por vir, eu me detinha no que havia passado. E mirava de novo, querendo ver, querendo marcar, querendo nunca mais parar de ver, e querendo que nada nunca mais passasse. Os prédios, as varandas, as pessoas de sobretudo. A música tosca, o mau-humor, eu revia tudo com ares de novidade, pedindo pro meu cérebro registrar com carimbo de boi cada momento, cada curva, cada pessoa, cada cheiro, cada paisagem.

Atrás de mim, o motorista me levava pra algum lugar que eu não podia ver; à minha frente, eu via tudo o que já tinha sido.
Estava me despedindo.
Minha despedida é um carimbo do olho.
Perdi o ponto. Percebi quando vi a Plaza Itália ficando pra trás - quer dizer, no meu caso, mais pra frente que as outras coisas. Desci.
Só fiquei sem saber para onde o motorista, ao final de tudo, ia me levar. Mas isso, acho que não dá pra saber nunca. Sabe como é. Na verdade, estou sempre no banco de costas.

domingo, 22 de maio de 2011

- Amo você a ponto de matá-lo a facadas.
- Não use a faca, prefiro morrer estrangulado.

Um pequeno diálogo do Império dos Sentidos que estava no meu caderno vermelho.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Blanche

Assim Tennessee Williams descreve a beleza de Blanche, na primeira cena em que ela aparece, na peça Um bonde chamado desejo:

uma beleza sensível que sabe fugir das luzes cruas.

*
Ei, seu Teneçí, se fizermos uma limpeza de pele, será que rola?

domingo, 1 de maio de 2011

Julia

Início da tarde, no apartamento de Julia. A Julia que eu inventei pra ser ex-namorada do Miguel. O Miguel que eu inventei pra protagonizar o meu roteiro. O roteiro que eu inventei para alguma coisa que não tem por quê. (Porque toda brincadeira, quando é bacana, sempre termina no "não sei porquê").

JULIA
Presta atenção. Vou começar o tour. Bem-vindo, senhor Miguel. Você está na porta de entrada, adentrando (gostou do adentrando?) a sala do apartamento. Tem bastante luz, e eu gosto sala com luz, um sofá, uma TV e... vamos pro corredor. Tchan! Aqui é o meu quarto. Meio barulhento, tá dando pra escutar? Pra quem saiu daquele silêncio, imagina a tortura. Aqui tem carro passando e um ponto de apoio da companhia de garis da cidade. O armário, saca só, é bem grande. Mas eu nem precisava. Hoje eu sou uma mala e meia: sou algumas roupas, meus livros e um computador. Eu sou isso. E gosto de ser isso, pouca coisa. Eu cabendo em mim. Olha só que legal. E nem sou budista. E aqui é o meu novo banheiro. Que tem... uma banheira. Uma banheira, Miguel. Caraca!

Nunca poderia imaginar que ia desfrutar de uma antes de virar uma velha com a coluna entrevada cujos netos dão banho de banheira para rememorar o que é uma piscina. Uma banheira! Na minha casa! Só tinha ido em banheira em hotel. Quer dizer, em motel. Olha como é estilosa. Azul. Já testei a água, sai bem quente, dá pra tomar aquele banho fervente. Tá dando pra ver tudo pela webcam? E o banheiro ainda tem essa janela. Janelaço, né não? Vou abrir pra você ver. Dá pra rua, eu tomo banho vendo uma porção de prédios. E ainda tem outra coisa. Espera aí que vou correr pra te mostrar.
(Julia abre um janelão)
É a varanda. Daqui da minha varanda eu vejo uma porção. E vejo muito fio também. Aqui é bem alto. Paisagem suja. Cinza. Mas, quando eu estou aqui, só consigo ver as varandas. Acho tão bonitinho, esse enfileiramento de sacadas. Tem uma ali ó, vou apontar a câmera pra lá, é incrível, mimosa, contida, pequena, cheia de plantas. E, ao seu lado, uma esculachada, que faz as vezes de varal. Sabe que, depois de um tempo, eu sinto falta de olhar pra cima e ver as montanhas da nossa cidade. Mas aí eu aprendi rapidinho a me despistar. Finjo para mim mesma que cada varanda dessa é uma montanha. Aí eu estou no Rio de novo. Uma varanda, uma banheira, um punhado de livros, roupas, computador. Miguel? Tá aí?