domingo, 30 de março de 2008

Eu ouço, mas ele não está tocando.
Eu ouço, juro que escuto, mas ele não está tocando.
E isso não se passou uma só vez, não. Vira e mexe tenho a mais límpida sensação de que estou escutando a musiquinha nervosa que coloquei no celular. Cavuco a bolsa com pressa, jogando pros lados os grampinhos de cabelo, as canetas coloridas, os papéis do banco, as moedinhas e um naco de maçã que devia ter jogado fora. Quando finalmente encontro o celular, nada. Ele não havia emitido um ruído sequer. Nem esboçou um tremelique.
Preocupada com a minha situação mental, relatei a alguns amigos tal infortúnio. E qual não foi minha surpresa quando descobri que muitas pessoas sofrem do mesmo mal, que acabo de diagnosticar como como "síndrome da chamada muito esperada". Ora pois, não é isso que estamos fazendo quando escutamos o que não estamos ouvindo? Tentando ouvir a todo custo uma tal ligação. Os neurônios enganando os tímpanos. Meu irmão futuro-doutor me deu explicações de base científica para o fenômeno, com muitos sufixos esquisitos e palavras de origem cósmica, as quais confirmaram com rigor o meu diagnóstico.
Agora fico me perguntando: de quem seria a chamada que escutei sem ouvir? Poderia ser do entregador de cartas, um sujeito simpático pra dedéu. Ou da manicure, que finge interesse nas minhas respostas. Poderia ser da avózinha, via além-orelhão, ou da Prima Bolha, meu personagem infantil predileto. Quem sabe fosse o General, protagonista do romance que estou lendo. Ou o mendigo que invejei porque tomava banho num chafariz. Talvez pudesse ser a garotinha que arriscava respostas para o monitor da exposição. Mas também poderia ser o Stallone - embora esse não tenha o meu telefone.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Alguém conhece um lugar
com mais farmácias
que o Humaitá?

segunda-feira, 24 de março de 2008

O invento

Era uma dia de verão. Estavam lá os homens reunidos fazendo nada em um terreno baldio. Um corria girando os braços e o outro fazia polichinelo. Um conversava com as nuvens à direita e o outro cantarolava versinhos. Um se despia sem parar e o outro preferia ler Camus. Um procurava formigas trabalhadoras, outro mirabolava sobre a invenção dos chips cerebrais.

Até que chegou o homem que carregava algo. E ele disse, não é algo, é bola.

Daí o homem que procurava formigas falou, passa a bola pra mim. E o homem que carregava algo respondeu, pode até ser, mas só se depois você passar para o homem que lê Camus. E o homem que lê Camus se meteu, você pode até passar para mim, mas só se for com os pés, daí depois eu giro e jogo com os pés pro homem que cantarola versinhos. E o homem que cantarola versinhos ficou assim meio raivoso, eu não vou mandar pra ninguém, eu vou mesmo é acertar algum lugar. Daí o homem que mirabolava sobre a invenção dos chips cerebrais provocou, pra você acertar um lugar é preciso saber que lugar é esse, ô animal. E o homem que fazia polichinelo resolveu tudo, vejam só que fácil, eu pego umas formigas mortas do homem que cata formigas e faço uma marca no chão para marcar o alvo. Finalmente, o homem que carregava algo falou que não era alvo, era gol.

Depois daquele dia de verão, nunca mais se fez nada no terreno baldio. Fazer nada agora tinha regras e nomes, como falta, escanteio, toque e quatro-quatro-dois. Fazer nada era muito mais divertido assim, pensavam os homens do terreno. Que continuava baldio, mas agora tinha muitas formigas mortas em linha reta. E para quem não sabe as regras do nada, cartão vermelho.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Meus amigos da sétima série

Luciana Almeida
Fazia experiências inusitadas com contrações e conjugações verbais.
- Num dá patu botar uma roupinha mais bonitinha, não? Tu inda se lasca com essa mania de preto.

Alice Silva e Silva
Utilizava inserções estrangeiras a cada vírgula, caprichando no biquinho.
- Sabe o que é, darling, você fica muito dark dessa maneira. A onda agora é o mega-hype-gothic-punk. Seja cool. Sweetheart.

Juca Teles
Não abria mão do formato escrito da narrativa, mesmo se estivesse só de sacanagem.
- Pois bem, não me furto de certo desgosto com essa sua calça justa e modorrenta. Sua energúmena.

Luli Ludmila
Usava fofa como vocativo, apenas alternando com amigaaa.
- Fofa, me ensina uns truques de magia negra? Dizem que é bárbaro, não é, amigaaaa?

quarta-feira, 19 de março de 2008

Manual prático de uma via

Dicas Botafogo-JB às 18h37. Comece inspirando em dois tempos e expirando em quatro. Se houver um cano de descarga muito fumacento na sua frente, inspire mais profundamente que dá onda. Coce as picadas de mosquito das pernas esquerda e direita alternadamente, enquanto mentaliza a lista de compras de supermercado, ou a mini-saia vermelha que ainda vai confeccionar. Interaja levemente com o motorista do carro ao lado, dizendo "tá foda". Não use outra frase, ninguém vai entender. Procure o extrato da sua conta de banco na bolsa, lamente que não está lá e tente se lembrar onde pode ter deixado. Então imagine onde sua avó deixaria o extrato da conta de banco dela, depois o Bill Gates e, por fim, com certo alívio, o George Clooney. Recite Morte e Vida Severina com a boca cheia de cuspe, e depois com voz de Pato Donald. Avalie com critérios rígidos qual récita foi mais difícil. Ligue o rádio, isso, o rádio. Ria dos papos informais dos divertidos jornalistas da CBN e anote algumas dicas de leituras para o outono. Pegue o celular. Ligue para alguém e desligue na cara. Ache isso divertido. Faça de novo. Quando estiver ali na entrada do Rebouças, comece com os exercícios físicos. Abdominais. Tríceps. Pense o quanto é inútil fazer exercícios e como é muito melhor tocar saxofone. Vislumbre um saxofone e toque-o no invisível, buscando inspiração nas buzinas, e não esqueça de limpar bem o instrumento antes de guardar. Abra uma enciclopédia. Leia verbetes sobre Madagascar e sobre a queda da Bastilha. E não se impaciente jamais - jamais. Você não está em São Paulo.

segunda-feira, 17 de março de 2008

essas pintinhas de dengue
pelo menos
poderiam ser comestíveis.
as da sola do pé dariam mais trabalho.
e as do cotovelo, é claro.
mas vale o desafio.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Dúvidas

Dúvidas crepusculares:

será que terei tempo para fazer tudo que quero antes de morrer?
será que há vida após a morte?
será que eu ficaria bem com o cabelo joãozinho?

terça-feira, 11 de março de 2008

chove.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Cátia

Cátia não tinha mais paciência para Valdir. Depois de umas idas e vindas, de um chove-não-molha incessante, ele até havia tentado ser direto, mas ainda assim parecia-lhe covarde. Ou medroso. Fraco, quem sabe. Achava que os três adjetivos estavam tão juntos em Valdir quanto a camisa que usava nos sábados de festa.

Foi em um domingo pela manhã que a impaciência se transformou em raiva. À tarde, a raiva tornou-se subitamente ódio, e Cátia lembrou-se da pistola chinesa que o avô recém-defunto deixara no fundo do armário.

A casa de Valdir ficava a apenas meia hora a pé. E sete minutos de bicicleta.

sexta-feira, 7 de março de 2008

entre aipim e macaxeira
José preferia
as frutas cítricas

quinta-feira, 6 de março de 2008

Dias desses fui à casa de um amigo, em Copacabana. Toquei o interfone no portão de fora. O porteiro simplesmente abriu a porta, sem perguntar o meu nome e para onde ia. Fiquei um pouco ressabiada. Então ele não me achou perigosa? Na entrada do prédio, informei, com a voz soturna: bom dia, vou pro 1304. O porteiro: primeiro elevador à direita.
Ele não perguntou o meu nome. Não consultou o meu amigo para saber se eu podia entrar. Ele realmente não tinha me achado perigosa. Não considerou que eu poderia ser um atentado aos moradores do lugar, nem que poderia ter planos escusos para assaltar todos utilizando apenas um cortador de unhas.
Fiquei preocupada. Uma pessoa como eu não pode passar despercebida. Sou uma ameaça. Sou uma revolucionária à espera do chamado. Lembrei-me das aulas de tiro com Fidel, das lições de direção defensiva em São Paulo, do curso para golpistas políticos em russo. Definitivamente, aquilo não poderia ficar assim. Utilizei uma técnica que aprendi num curso online de disfarçatez em primeiro grau e virei-me para o porteiro olhando para os lados, como se estivesse esperando um sinal para atacar dos meus companheiros de combate. Perguntei baixinho: o senhor não vai interfonar? Ele, com os olhos grudados no jogo de futebol: pode subir, senhora, tem problema não.
É. A sociedade não está mesmo preparada para a revolução.

quarta-feira, 5 de março de 2008

É março:
calouros pintados suados bem-humorados pedem din-din nas calçadas de Botafogo.
Pingo uns cinco centavinhos e aproveito para puxar um papo,
porque calouros são uma espécie com mais expectativa que grávidas de nove meses.

segunda-feira, 3 de março de 2008

certas respostas

pode ser,
mas só de vez em quando.

sábado, 1 de março de 2008

fado

hoje acordei com vontade de compor um fado.
meu fado era enfadonho
e me deixou enfadada
(talvez um pouco fagocitada)
me apoiei em uma almofada
e pedi ao fado uma carta de alforria