quinta-feira, 28 de abril de 2011

Em Buenos Aires, eu caminho olhando pra cima.
(E ando vendo muita varanda. E muita coisa nas varandas)

o maestro

A orquestra estava em silêncio. Todos tinham afinado os seus instrumentos. Músicos e musicistas de preto: os homens de fraque, as mulheres em lindos longos com detalhes brilhantes, eram cerca de cem os que aguardavam a chegada do maestro.

O maestro estava nervoso, mas pisou firme no palco quando entrou. Se acreditasse em astrologia, diria que estava em seu inferno astral; mas achava tudo isso uma baboseira. O teatro cheio, a batuta na mão, os mais de cem músicos, ele era o maestro, era poderoso de novo.

Ergueu a batuta. Firme. A primeira nota, do cello à sua esquerda, estava por vir. Não veio. Não veio o violino, não veio a clarineta. A primeira cadeira rangeu o chão. Era um violoncelista, que deixava o palco. E assim, em uma sequência de dominó, um por um, todos os músicos da orquestra deixaram o palco. Cadeiras tocaram o seu arrastar; sapatos tocaram pisadas fugazes; um ou outro murmúrio; saltos quicando; portas de coxias fechadas.

O maestro sozinho, a batuta em riste, para uma orquestra que se foi.

*
(Ontem minha mãe me narrou mais ou menos essa cena, que aconteceu em um concerto ao qual ela tentou ir. A cena ficou martelando na minha cabeça até agora. Adorei a idéia da orquestra dispensando o maestro. Escrevi pra tentar me livrar da cena. A ver se consigo. Se não der certo, como uma empanada.)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Como matar um mosquito

Gente que mata mosquito sem bater palmas. Sem fazer barulho.
Gente que mata mosquito no silêncio,
capturando com uma mão,
envolvendo-o com todos os dedos.
Depois abre a mão devagar, e checa.
Lá está o inseto, esmigalhado entre as linhas de uma palma
que cigana nenhuma leu.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

May I feel

Cummings é grande. E escreveu isso aqui, ó:


may i feel said he
(i'll squeal said she
just once said he)
it's fun said she


(may i touch said he
how much said she
a lot said he)
why not said she


(let's go said he
not too far said she
what's too far said he
where you are said she)


may i stay said he
(which way said she
like this said he
if you kiss said she


may i move said he
is it love said she)
if you're willing said he
(but you're killing said she


but it's life said he
but your wife said she
now said he)
ow said she


(tiptop said he
don't stop said she
oh no said he)
go slow said she


(cccome?said he
ummm said she)
you're divine!said he
(you are Mine said she)

domingo, 17 de abril de 2011

Como todas as pessoas que, de algum modo, vivem de ter ideias, eu tenho um caderninho. Depois de tentar dividir as seções por temas, por trabalhos, por situações amorosas e o escambau, percebi que, para uma pessoa completamente desordenada como eu, o melhor seria separar o caderninho por datas. Assim que pus meus pés na capital argentina, abri uma parte. Dobrei uma pontinha de uma folha - veja como é fácil abrir um espaço na vida - e escrevi, em garrafais vogais: Buenos Aires.

Aqui estou.

Meu método de caderninho funciona assim: anotar o que passa na cabeça. Anotar uma palavra. Anotar algo ouvido. Anotar uma besteira pra completar depois. Anotar. Minha parte Buenos Aires começa com um punhado de sensações físicas da cidade: a arquitetura, as ruas, tudo muito diferente do meu porto natal. Depois, caminho por frases que escutei, li, inventei. Mais recentemente, pensatas sobre o que é ser e querer ser um estrangeiro.

Algumas delas. Sou estrangeira porque:
- Não sou nativa da língua. Mesmo que me comunique bem, me delato em uma frase.
- Deixei de ir a uma festa porque cheguei no lugar e não entendi que aquilo podia ser uma festa.
- Tenho que me apropriar dos lugares, torná-los meus. A calle Ayacucho é minha. O bilheteiro do metrô é meu amigo.
- Porque eu vejo diferenças o tempo todo. Mesmo que não queira.
- Porque tenho um espanto por dia, mesmo que pequeno. Se não tiver eu forjo.
- Porque adoro me espantar com as coisas.
- Porque vim aqui pra me espantar.
- Porque estou sempre fora.