quarta-feira, 9 de março de 2011

Epistolar

Querido assaltante,

eu queria te dizer que estou há uma hora e meia chorando por sua causa. Que estraçalhei os vidros da janela por sua causa, que joguei todos os meus papéis no ar e rasguei vários escritos por sua causa. Você, que, imagina, só queria o seu próprio bem, causou a minha desgraça. Me joguei no chão e não consegui levantar porque você existe, solucei no tapete da sala por sua culpa, fiquei nua e não consegui tomar banho por causa da sua passagem na minha vida. A você dedico todo o meu ódio. Você vai morrer.

Eu não tenho mais nenhum documento. Não tenho mais nenhum número que me represente. Todos os papéis que atestam a minha identidade estão em seu poder. O que você teria feito deles? Recortou o retrato, colou na parede? Fez sopa de letrinhas com a identidade? Vendeu? Há alguma outra de mim por aí? Eu vou virar uma traficante de armas, uma vendedora de rins? Por sua causa, por causa da sua indignidade, dois amigos terão que ir a um orgão do governo, veja só, dizer que eu sou a Clara. Eu mesma terei que testemunhar a meu favor, dizer que eu sou eu, que tenho esse nome, que nasci naquela cidade, quando nem ouso ter essa certeza. E, por sua culpa, agora estou limitada a fazer um único trajeto na vida, o de volta ao meu país.

Você me roubou o espaço, seu merda. Você me roubou muita coisa. Mas você não me roubou as pernas. Muito menos a cabeça.

Eu sonhei com você na noite passada. Eu não sabia que você existia, mas sonhei com você. Tenho sonhado muito aqui nessa cidade, e na noite passada acordei com o meu próprio esforço para berrar. Estava quase de pé. Eu não costumo sequer me mexer dormindo, e essa noite não só falei, mas, sim, berrei. Era a mesma sensação de perigo iminente que você me faz sentir agora, e que me impede de sair à rua, por puro pânico.

Você não é só você. Você são muitos. Você vai morrer.

Eu nunca vou saber quem você é. Você vai estar em todas as esquinas que eu cruzar, em todos os ônibus que pegar, em cada estação de metrô, entrada de teatro, elevador, no apartamento de cima, no sussurrar ao lado. Vou te agredir todos os dias. E vou te imaginar muito tempo. Agora, por exemplo, te imagino com a cabeça na guilhotina. É tão delicioso pensar nisso. Li outro dia que um líder rebelde de outrora havia sido condenado à morte por esquartejamento com cavalos. Isso mesmo, cada cavalo puxando uma parte do corpo. Esquartejado por cavalos. Acho que algo por aí seria mais adequado a você.

Vou te odiar sempre.
E você jamais me impedirá de nada.

Att,

Nenhum comentário: