terça-feira, 29 de setembro de 2009

O alô

Já passava da meia noite quando o telefone tocou. Eu estava na sala lendo, ainda bem acordada. Agora só leio na sala, pois a lâmpada do quarto está muito fraca. Não tive muita preguiça de levantar e ir até o quarto para atender. O telefone fica ao lado da televisão, em uma mesa de criança almoçar, que eu achei quando cheguei no apartamento.
Alô?
Acho que apenas umas cinco pessoas tem o número desse telefone fixo - minha família, dois ou três amigos, o chefe. Essa é uma das vantagens de mudar de casa: ninguém sabe direito onde eu moro, ninguém tem o número do meu fixo. Nunca recebi trotes, telefonemas em horários inapropriados, ameaças de sequestro, propostas de adoção de famintos africanos, votos de feliz natal. Vou continuar no anonimato telefônico.
Alô!
A pessoa do lado continuava em silêncio. Eu estava curiosamente de bom humor, e não mandei meu interlocutor à merda, como ele - ou ela - merecia. Simplesmente dei uma pausa, pois sabia que havia alguém do outro lado, e que esse alguém estava gostando de escutar a minha voz e o meu silêncio, estava gostando de saber que interrompeu a minha leitura, embora àquela hora eu também pudesse estar lavando roupa, tomando banho, e nesse caso o telefone estaria molhado. Não disse isso à pessoa do outro lado. Mas a minha voz, sem que eu tivesse planejado, ficou mais melosa, com o A mais forte:
Alô.
Tudo bem. Essa é a brincadeira. Eu não sei quem você é, você sabe quem eu sou. Quando estava na sétima série, fiz isso algumas vezes. Eu era apaixonada por um menino uns dois anos mais velho, de olhos azuis e peitoral de nadador, que se chamava Diego. Dei um jeito de roubar a carteirinha escolar dele, descobrir o telefone, e ficava ligando pra casa dele só para escutar seus seguidos alôs. Diego era tão desejado e soberano, o gato da escola, por quem todas as meninas suspiravam. E ficava tão ridículo no telefone, falando alô para o silêncio. Perturbado, dizia alôs rápidos, perguntava quem era. Eu ria baixinho, do outro lado da linha. Gosto do ridículo. Humaniza.
Alô-ou.
A pessoa do outro lado existe, e tem alguma curiosidade sobre mim. A pessoa do outro lado talvez queira me chamar pra tomar um porre, ou para uma sessão do descarrego, para fazer risoto de funghi, ou quem sabe para ler poesia em voz alta. A pessoa do outro lado gosta de mim e sabe que eu sou tão ridícula quanto ela.
Clara?

2 comentários:

C. Meirelles disse...

"Clara?" - não fui eu, juro!

Ju disse...

Gosto do ridículo. Humaniza.