Osvaldo: O que você acha de mim?
Kent: Um canalha, um patife, um comedor de restos; um velhaco arrogante, estúpido, indigente, que tem apenas três roupas e meias fedorentas, um filho da puta covarde, sem sangue no fígado, que foge da luta e se queixa à justiça, trapaceiro afeminado e sabujo. Um escravo que herdou apenas um baú, que presta serviço numa alcova, um alcoviteiro; no fim, uma mistura de canalha, mendigo, covarde, rufião, filho e herdeiro de uma cadela bastarda a quem eu espancarei até que estoure em berros, se negar a menor sílaba do que eu disse agora.
***
Shakespeare, William. O Rei Lear. Mistura da tradução do Millôr com a do Jorge Wanderlei, edição minha. Para quem acha que o homem é só erudito, engulam essa. Sabe xingar como ninguém. Agora vou sair daqui dessa lan house fedida com esse adolescente tarado à esquerda e esse matador virtual à direita. Com licença.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
Espancarei até que estoure em berros
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Clara
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domingo, 25 de janeiro de 2009
Ensaio sobre as reticências
De todos os sinais de pontuação, são elas, as reticências, as mais instigantes.
Ao contrário do ponto, da vírgula, da interrogação, e até mesmo da exclamação, elas só existem no plural - como Vinícius, Rubens, parabéns e lápis. E eu adoro coisas que só existem no plural (fosse maior o meu despudor, mudaria meu nome para claras). Ainda que algumas pessoas usem a exclamação sempre no plural, normalmente em grupinhos de três, o fazem por desengano: o trio é uma propriedade das reticências, que, como piranhas de água doce, não sabem viver separadas.
As reticências afirmam, berram, pausam e, principalmente, duvidam. Daí a dificuldade de aplicação das três bonitinhas. São tantas as possibilidades que elas sugerem que é melhor eliminar algumas. Fazendo os devidos cortes, manipulando as informações aqui e ali, pronto, o ponto cai melhor. Ou a vírgula. Quem sabe um honestíssimo ponto e vírgula (esse também, cabe dizer, tem um parentesco com as reticências).
A exemplo da teoria da montagem cinematográfica de um russo cujo nome me escapa, me ocorreu algo como uma teoria da montagem das reticências, que comecei a fazer e, para variar, enfiei na gaveta.
Enfiei as reticências no mesmo lugar em que repousam a ovelha elétrica, um velho de Botafogo e um pianista de escuridões. Lá está melhor que cá, foi o que me disse o vendedor chinês do podrão de salgadinhos, querendo sair.
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Clara
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sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
Rei Lear e meu primeiro suborno
Rei Lear expulsa sua filha Cordélia do reino e nega-lhe direito à partilha dos bens. Filha ingrata, esbraveja o rei. O policial foi mais brando que Lear e não gritou comigo:
- E aí, belezinha, teu namorado chega ou não chega com esse documento?
- Espera só mais um pouco.
- Só vou ficar mais meia hora. Se ele não chegar, vou te multar e apreender o veículo.
Alisou o revólver, fingi que não percebi. Eram cinco policiais, ostentando armas gordas, que acariciavam de vez em quando. Eu estava calma. Não gosto mesmo é de fuzil. Ia ficar ali lendo o Rei Lear até que o meu namorado chegasse com o documento. Kent diz para Lear: sou alguém de coração extremamente honesto, senhor, e tão pobre quanto o Rei.
Já era a segunda blitz que me pegava ali em Santa Teresa. Saco. Oito horas da manhã, eu querendo trabalhar, o policial ia e vinha e ficava parado do meu lado, escutando meus telefonemas, fingindo que não estava me vigiando, até que resolveu bater papo.
- Você trabalha no centro?
- É, ali na Rio Branco.
Sempre gostei de mentir.
- Com computador?
- Sou engenheira eletrônica. Crio softwares e bancos de dados.
Tomara que ele não me peça detalhes.
- Eu tô indo pra Polícia Federal em março. Passei no concurso. Vida de PM não dá, muito tiroteio, a gente é que faz o trabalho sujo.
- Legal.
- Eu vou lá pra Brasília. Aí não tem pra ninguém: vou desbancar juiz, ministro, qualquer um.
O cara se animou e eu com medo daquela porcaria de revólver disparar. Sai daqui, meu senhor, eu como tanta alface para morrer aos oitenta, um deslize e vou-me embora ainda com os peitos no lugar. Vários carros eram parados na blitz, um consolo e ao mesmo tempo uma triste confirmação: a maioria dos veículos, mesmo os que tinham problemas nos documentos, eram liberados com muita agilidade. Eu ali, tentando colocar em prática as lições de cidadania, enquanto Edgar dizia a Lear que estudava como evitar o demônio e esmagar piolhos.
- Belezinha, esse seu namorado não chega, não?
- Vai chegar, calma.
- Falei pro comandante que você é gente boa.
Dei um sorrisinho. Toca, telefone, toca, diz que eu vou sair daqui logo.
- O comandante me perguntou, será que a garota não quer pagar o meu almoço?
- O documento já está chegando, você vai ver.
- Me desculpe falar dessas coisas com você, prefiro tratar com homem.
Meu desapontamento foi maior que o de Cordélia quando eu soube que o plano não ia dar certo. Nada de documento. Não, não tem problema. Sim, já propôs o suborno. Não, eu não falei nada, foi ele mesmo. Não se preocupe, vou dar um jeito.
- Amigo, vou pagar o almoço do comandante.
O cara olhou pros lados, como se eu tivesse falado javanês, e foi com o canto da boca que sussurrou:
- Coloca em um envelope.
Como assim, meu senhor? Você acha que eu ando por aí com envelopes? Já deu sorte que eu tenho alguma nota, normalmente só uso dinheiro de plástico. Coloquei o dinheiro na única coisa que tinha para disfarçar o gesto, o exemplar do Rei Lear, e dei o livro a ele.
O PM pegou o livro sem pressa, olhou a capa, folheou as páginas. Parecia ter um certo gosto para teatro.
- Essa história é legal?
- Maravilhosa.
- Fala de quê?
- Do rei da Bretanha, que pretende dividir o reino entre suas três filhas, mas uma delas se recusa a...
- Muito bacana.
Me devolveu o livro assim que achou a grana, cravada no diálogo entre Gloucester, Lear e Edgar. Por uns dois segundos inocentemente pensei, ou melhor, desejei, e desejei muito, que aquele idiota levasse também o livro como propina. Quem sabe lesse. Quem sabe o filho dele lesse. Ou o comandante, entre a salada e a batata frita que eu estava pagando. Corrupto, ele? Eu. Mas viva. No Rio de Janeiro.
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terça-feira, 13 de janeiro de 2009
"Jovens, envelheçam"
Nelson Rodrigues
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Clara
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Reforma ortográfica, uma ova.
Há coisas muito mais bonitinhas a se fazer com a língua portuguesa.
Eu prefiro falar camião
e o rins
e no meu acordo ortográfico todo mundo fala ih, lá vem o camião, justo agora que senti uma pontada no rins.
Logo estaremos todos unificados.
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Clara
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quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
Quanto tempo dura uma lembrança?
Quanto tempo dura uma lembrança?
2008 todo, tirando talvez metade de junho e uns três dias de agosto, acaba de me durar dois segundos e meio.
(ok, acho que desconsiderei também um rabinho de dezembro)
Já as lembranças da infância no parquinho do Jardim Botânico começaram ontem e parecem não ter fim.
Pior mesmo, e isso me deixa meio indignada, são as mais intensas recordações que tenho dos meus filhos que ainda nascerão, dos comentários sobre o livro que escreverei, do preço salgado do creme anti-rugas que passarei, dos meus netos que reclamarão com voz aguda da minha inaptidão culinária. Essas são, com toda a certeza, as minhas recordações mais angustiantes.
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Clara
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