Aqui em Buenos Aires há aqueles ônibus com bancos nos dois sentidos. Ou seja, muitos passageiros viajam olhando para o sentido em que anda o ônibus, para a frente. Outros viajarão de costas para o destino, tendo à sua frente apenas o que já passou.
Hoje, por conta de diversas maluquices, passei cerca de 5 horas em meios de transporte. Peguei metrô, trem, remis de favela. Voltei. Tomei um banho. Andei a pé (meu meio de transporte favorito). Já no meio da tarde, precisei pegar um ônibus para ir a Palermo, o 37, velho conhecido, que tem parada na Callao. Dei uma corridinha pra alcançar o carro, que estava meio cheio, com gente de pé, mas sem muita acotovelação. Eu não curto viajar nos bancos que andam pra trás, por uma questão de superstição (agnóstico é muito supersticioso). Mas a minha superstição nunca é maior que a minha preguiça de ficar em pé.
Não tinha andado nem duas quadras quando uma senhora saltou e vagou um banco, desses de costas. um assentinho só, solitário, sem gente ao lado, ficava perto da máquina de pagar. Me acomodei no banco. O percurso até a Plaza Itália levaria cerca de meia hora, no mínimo.
À minha frente, eu via todo o caminho por onde o ônibus já tinha andado. Enquanto o resto dos meus companheiros olhava o que estava por vir, eu me detinha no que havia passado. E mirava de novo, querendo ver, querendo marcar, querendo nunca mais parar de ver, e querendo que nada nunca mais passasse. Os prédios, as varandas, as pessoas de sobretudo. A música tosca, o mau-humor, eu revia tudo com ares de novidade, pedindo pro meu cérebro registrar com carimbo de boi cada momento, cada curva, cada pessoa, cada cheiro, cada paisagem.
Atrás de mim, o motorista me levava pra algum lugar que eu não podia ver; à minha frente, eu via tudo o que já tinha sido.
Estava me despedindo.
Minha despedida é um carimbo do olho.
Perdi o ponto. Percebi quando vi a Plaza Itália ficando pra trás - quer dizer, no meu caso, mais pra frente que as outras coisas. Desci.
Só fiquei sem saber para onde o motorista, ao final de tudo, ia me levar. Mas isso, acho que não dá pra saber nunca. Sabe como é. Na verdade, estou sempre no banco de costas.
quinta-feira, 26 de maio de 2011
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Clara
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Marcadores: Buenos Aires
domingo, 22 de maio de 2011
- Amo você a ponto de matá-lo a facadas.
- Não use a faca, prefiro morrer estrangulado.
Um pequeno diálogo do Império dos Sentidos que estava no meu caderno vermelho.
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Clara
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quarta-feira, 11 de maio de 2011
Blanche
Assim Tennessee Williams descreve a beleza de Blanche, na primeira cena em que ela aparece, na peça Um bonde chamado desejo:
uma beleza sensível que sabe fugir das luzes cruas.
*
Ei, seu Teneçí, se fizermos uma limpeza de pele, será que rola?
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Clara
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domingo, 1 de maio de 2011
Julia
Início da tarde, no apartamento de Julia. A Julia que eu inventei pra ser ex-namorada do Miguel. O Miguel que eu inventei pra protagonizar o meu roteiro. O roteiro que eu inventei para alguma coisa que não tem por quê. (Porque toda brincadeira, quando é bacana, sempre termina no "não sei porquê").
JULIA
Presta atenção. Vou começar o tour. Bem-vindo, senhor Miguel. Você está na porta de entrada, adentrando (gostou do adentrando?) a sala do apartamento. Tem bastante luz, e eu gosto sala com luz, um sofá, uma TV e... vamos pro corredor. Tchan! Aqui é o meu quarto. Meio barulhento, tá dando pra escutar? Pra quem saiu daquele silêncio, imagina a tortura. Aqui tem carro passando e um ponto de apoio da companhia de garis da cidade. O armário, saca só, é bem grande. Mas eu nem precisava. Hoje eu sou uma mala e meia: sou algumas roupas, meus livros e um computador. Eu sou isso. E gosto de ser isso, pouca coisa. Eu cabendo em mim. Olha só que legal. E nem sou budista. E aqui é o meu novo banheiro. Que tem... uma banheira. Uma banheira, Miguel. Caraca!
Nunca poderia imaginar que ia desfrutar de uma antes de virar uma velha com a coluna entrevada cujos netos dão banho de banheira para rememorar o que é uma piscina. Uma banheira! Na minha casa! Só tinha ido em banheira em hotel. Quer dizer, em motel. Olha como é estilosa. Azul. Já testei a água, sai bem quente, dá pra tomar aquele banho fervente. Tá dando pra ver tudo pela webcam? E o banheiro ainda tem essa janela. Janelaço, né não? Vou abrir pra você ver. Dá pra rua, eu tomo banho vendo uma porção de prédios. E ainda tem outra coisa. Espera aí que vou correr pra te mostrar.
(Julia abre um janelão)
É a varanda. Daqui da minha varanda eu vejo uma porção. E vejo muito fio também. Aqui é bem alto. Paisagem suja. Cinza. Mas, quando eu estou aqui, só consigo ver as varandas. Acho tão bonitinho, esse enfileiramento de sacadas. Tem uma ali ó, vou apontar a câmera pra lá, é incrível, mimosa, contida, pequena, cheia de plantas. E, ao seu lado, uma esculachada, que faz as vezes de varal. Sabe que, depois de um tempo, eu sinto falta de olhar pra cima e ver as montanhas da nossa cidade. Mas aí eu aprendi rapidinho a me despistar. Finjo para mim mesma que cada varanda dessa é uma montanha. Aí eu estou no Rio de novo. Uma varanda, uma banheira, um punhado de livros, roupas, computador. Miguel? Tá aí?
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Clara
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