sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Rei Lear e meu primeiro suborno

Rei Lear expulsa sua filha Cordélia do reino e nega-lhe direito à partilha dos bens. Filha ingrata, esbraveja o rei. O policial foi mais brando que Lear e não gritou comigo:

- E aí, belezinha, teu namorado chega ou não chega com esse documento?
- Espera só mais um pouco.
- Só vou ficar mais meia hora. Se ele não chegar, vou te multar e apreender o veículo.

Alisou o revólver, fingi que não percebi. Eram cinco policiais, ostentando armas gordas, que acariciavam de vez em quando. Eu estava calma. Não gosto mesmo é de fuzil. Ia ficar ali lendo o Rei Lear até que o meu namorado chegasse com o documento. Kent diz para Lear: sou alguém de coração extremamente honesto, senhor, e tão pobre quanto o Rei.

Já era a segunda blitz que me pegava ali em Santa Teresa. Saco. Oito horas da manhã, eu querendo trabalhar, o policial ia e vinha e ficava parado do meu lado, escutando meus telefonemas, fingindo que não estava me vigiando, até que resolveu bater papo.

- Você trabalha no centro?
- É, ali na Rio Branco.
Sempre gostei de mentir.
- Com computador?
- Sou engenheira eletrônica. Crio softwares e bancos de dados.
Tomara que ele não me peça detalhes.
- Eu tô indo pra Polícia Federal em março. Passei no concurso. Vida de PM não dá, muito tiroteio, a gente é que faz o trabalho sujo.
- Legal.
- Eu vou lá pra Brasília. Aí não tem pra ninguém: vou desbancar juiz, ministro, qualquer um.

O cara se animou e eu com medo daquela porcaria de revólver disparar. Sai daqui, meu senhor, eu como tanta alface para morrer aos oitenta, um deslize e vou-me embora ainda com os peitos no lugar. Vários carros eram parados na blitz, um consolo e ao mesmo tempo uma triste confirmação: a maioria dos veículos, mesmo os que tinham problemas nos documentos, eram liberados com muita agilidade. Eu ali, tentando colocar em prática as lições de cidadania, enquanto Edgar dizia a Lear que estudava como evitar o demônio e esmagar piolhos.

- Belezinha, esse seu namorado não chega, não?
- Vai chegar, calma.
- Falei pro comandante que você é gente boa.
Dei um sorrisinho. Toca, telefone, toca, diz que eu vou sair daqui logo.
- O comandante me perguntou, será que a garota não quer pagar o meu almoço?
- O documento já está chegando, você vai ver.
- Me desculpe falar dessas coisas com você, prefiro tratar com homem.

Meu desapontamento foi maior que o de Cordélia quando eu soube que o plano não ia dar certo. Nada de documento. Não, não tem problema. Sim, já propôs o suborno. Não, eu não falei nada, foi ele mesmo. Não se preocupe, vou dar um jeito.

- Amigo, vou pagar o almoço do comandante.
O cara olhou pros lados, como se eu tivesse falado javanês, e foi com o canto da boca que sussurrou:
- Coloca em um envelope.
Como assim, meu senhor? Você acha que eu ando por aí com envelopes? Já deu sorte que eu tenho alguma nota, normalmente só uso dinheiro de plástico. Coloquei o dinheiro na única coisa que tinha para disfarçar o gesto, o exemplar do Rei Lear, e dei o livro a ele.

O PM pegou o livro sem pressa, olhou a capa, folheou as páginas. Parecia ter um certo gosto para teatro.
- Essa história é legal?
- Maravilhosa.
- Fala de quê?
- Do rei da Bretanha, que pretende dividir o reino entre suas três filhas, mas uma delas se recusa a...
- Muito bacana.

Me devolveu o livro assim que achou a grana, cravada no diálogo entre Gloucester, Lear e Edgar. Por uns dois segundos inocentemente pensei, ou melhor, desejei, e desejei muito, que aquele idiota levasse também o livro como propina. Quem sabe lesse. Quem sabe o filho dele lesse. Ou o comandante, entre a salada e a batata frita que eu estava pagando. Corrupto, ele? Eu. Mas viva. No Rio de Janeiro.

6 comentários:

Jeanne Duval disse...

Só pode ser um comandante de Santa Teresa para comer salada no almoço! 5 reais no PF, 25 para abastecer o Kit Gás e mais uns 5 reais na Mega Sena isso sim!

Eu já levei um fuzil na cabeça na mesma região e... Ana branco diz que só carnívoros sofrem esse tipo de coisa.

Anônimo disse...

Ai meu Deus. E a nota era de quanto? Sempre tive receio de ser parada e nao saber como subornar. Mas pelo visto é bem simples, basta ter um exemplar do Rei Lear no carro.

Unknown disse...

Bravo ! Bravíssimo ! !!

Clara disse...

Só carnívoros sofrem com a PM do Rio? Essa é a melhor explicação antropológica que eu já vi sobre nosso caos urbano.

Dani, realmente não é preciso ter técnica nenhuma, o Rei Lear basta. Um Hamlet também não cairia mal, aposto.

Beijocas

Anônimo disse...

grande uso do karatê q vc faz...

enfrentar policiais escrotos e ser obrigado a compactuar com a corrupção faz parte de toda a malandragem carioca, né não?

fico feliz de nunca ter precisado fazer isso, apesar de ter ajudado o balso a fazê-lo uma vez...

e q venham os policiais literários!

Anônimo disse...

rodou, Shakepeare.

Victor