- Fura isso logo.
Estendi minha mão, ele ficou com medo.
- Não. Você é muito delicadinha.
A agulha já estava ajustada no aparelho, depois de muito esforço e muito tempo perdido. Esse é o melhor aparelho que há no mercado, me dizia separando bem as sílabas e certamente repetindo o que o chefe dissera na reunião. Havia perdido a mulher da vida dele para outro, havia arrumado um emprego novo; precisava de conselhos da amiga, precisava entender o funcionamento do produto para uma reunião no dia seguinte, e o Bar Urca se ajustava incrivelmente bem a tudo aquilo. O garçon mal-humorado demorou pra trazer o chopp. Alta concentração, ninguém reparando, meu amigo tirava agulhas de um pacote e ajustava sem habilidade nenhuma naquele furador.
- Ia pedir em casamento, ela veio com essa história de tempo.
- Tava na cara que ela ia acabar. Vai dizer que você não desconfiou?
A agulha escorregou no chão. Ele pegou com um desnecessário guardanapo.
- Ela andava estranha. Mas mulher... vai saber. Podia ser só TPM.
TPM. A culpa sempre é da TPM. Isso é típico de homem machista, que não consegue arrumar outra explicação para as vontades femininas. Quase disse, bem feito, achou que era TPM e levou o maior fora de todos os tempos. Mas mudei de idéia.
- Vai ver você não estava dando atenção suficiente para ela. Esse emprego novo deve estar te sugando a alma.
- Que nada. Dava muita atenção. Principalmente depois do meu caso com a Flavinha. Ficava meio culpado, chegava em casa cheio de amor pra dar.
Finalmente conseguiu colocar a agulha no furador de dedos. Êxito completo, só faltou gargalhar.
- Esse é mesmo o melhor produto do mercado.
Não tenho saco pra essas frases de vendedor, principalmente quando repetidas.
- Dá o resultado da glicose no sangue em cinco segundos. E ajusta para qualquer dedo, do mais fininho ao de pedreiro. O meu deve ser meio termo.
Não queria dizer pra ele, mas não são só os pedreiros que têm mão grossa. Acho que esse não é o tipo de coisa que se diz a um amigo que levou um fora, embora já estivesse achando o pé na bunda muito merecido.
- Tá vendo essa tirinha? Aqui é que tem que colocar o sangue.
- Gostei. Pequenininha.
A tal tirinha parecia um post-it. Se tivesse em casa uma coleção daquelas, certamente escreveria bilhetinhos lembrando a mim mesma as minhas atividades: Louise, análise amanhã, Louise, ligue para fulana, adoro escrever pequenas mensagens para mim. Jamais usaria aqueles delicados papéis para colocar meu sangue. Meu amigo não se importou com isso. Simplesmente se agulhou, com uma pontada de medo, seguindo com cuidado as instruções do manual.
- Não furou. Saco. Será que o meu dedo é mais grosso?
Aumentou para o nível 4, pré-pedreiro. Agulhada de novo. Não foi.
- Caraca, meu dedo é muito grosso.
Tentou dissimular o orgulho.
- Me fura. Meu dedo é mas fino.
- Não.
- Anda. Fura isso logo.
Estendi o indicador. Olhou minhas unhas, pintadas de esmalte Marrocos, uma cor meio marron, que não chega a café, talvez pela lembrança de vermelho no fundo. A manicure sugeriu, eu coloquei, caiu bem.
- Não. Você é muito delicadinha.
quarta-feira, 11 de março de 2009
Furador
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