domingo, 30 de janeiro de 2011

Varandas

Grande erro nunca ter tido uma varanda. Grande erro nunca ter tido uma varanda no sétimo andar.
Essa varanda é antiga, como o prédio. Pequena, com um gradil geométrico - mas de ferro, e não desses laminados modernosos. O chão é de lajotas avermelhadas. A porta de entrada é de correr, mas mal corre. E eu gosto que seja assim, meio emperrada. Daqui vejo a rua, com seus bolos de sacos de lixo dominicais. Daqui vejo a caquética janela do meu vizinho, unidas uma parte a outra por um fio elétrico velho. Daqui reconheço calcinhas gigantescas no varal de chão da vizinha, que usa a sua varanda para secar roupas. Daqui escuto mamãe me chamando lá de dentro.
- Você já comeu? Não estava com fome?
- Mãe, o que você está fazendo aqui? Eu estou sozinha nessa cidade. Já não te disse isso? Estou sozinha. É uma questão de lógica. Você não pode estar aqui. Você não está aqui.
Correm uns fios elétricos pela parte externa do prédio, e esses eu também vejo daqui da varanda. Os carros lá embaixo passam como se quisessem correr, mas algo os aprisiona. As leis de trânsito, talvez. Mas só talvez.
- Está na mesa.
- Não está. Você não está aqui.
Olho para os outros prédios, as caixinhas quadradinhas, e vejo as outras varandas. Quase todos têm varandas. Balcon, como se diz por aqui.

O prédio, uma caixa. A varanda, uma saída para o respiro. Já reparou em gente saindo de casa e entrando na varanda? Mal pisam na varanda, aquela saliência aérea, as pessoas costumam buscar algo com o olhar - uma nuvem, um carro mais apressado, um pega ladrão, uma nuvem no céu. Mal saem na varanda e gesticulam diferente, espreguiçam, se liberam de alguma coisa.
A varanda é o pequeno espaço em que se pode criar. É por isso que estou nela agora. E vou varandear por muito tempo.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Bs As me dá boas vindas

O bêbado rastejante não me viu. Eu queria que ele tivesse me visto, mas não viu. Ou, se viu, não vai lembrar. Havia acabado de chegar e, faminta, procurava nos arredores da Ayacucho um restaurante decente para comer. A fome me roía as tripas, mas fui capaz de esquecê-la ao ver os muros das ruas, as placas, ouvir aquela música diferente de Buenos Aires. E um calor que chega a ser elegante, posto que não é esbaforimento. Foi antes de chegar na Corrientes que vi o tal bêbado. De tão podre e trôpego, estava sendo carregado por um amigo. Aliás, não parecia um amigo, mas um solidário de meio de rua - adoro os solidários anônimos, essa gente que ajuda os outros no meio da rua, a troco de nada. Nunca consegui ser uma.
O sujeito era velho, meio barbudo e grisalho. Começou a procurar algo no bolso. Tateava a calça com a mesma sofreguidão com que caminhava, e eu fiquei com medo. Fiz um cálculo rápido: se fosse um assaltante, havia grande chance de ser eu a vítima. Mulher, sozinha, sabe como é. Ele certamente estava tateando a calça em busa de um estilete, uma faca, uma arma pequena. Me afastei.
Já estava alguns passos distante quando escutei o som. O sopro de uma gaita. O trôpego conseguiu tirar do bolso uma gaitinha e soprar. O cara tocava com a força e o encanto que suas pernas jamais voltariam a ter. Ele executou toda uma música, inteira, sem erros. De pé, ao lado de uma árvore. Ele não tinha força para mais nada. Só para aquilo.
Agora, aqui no sofá, lembro de um ensaio que acabei de ler e fala sobre um pianista completamente apático, que se transforma completamente ao ter na sua frente o seu instrumento. Quantos de nós, completamente apáticos, nos deixamos transformar apenas em determinadas situações? Mexo no travesseiro. Amanhã, quem sabe ele não está lá de novo. Bêbado. O gaiteiro da Ayacucho.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Dylan, por Hammil

Fiz uma coisa antiga: li um encarte de CD. Um texto do Pete Hamill em um encarte de um CD do Bob Dylan. Gostei muito e traduzi um pedaço (traduzir não é a coisa mais simples do mundo). O texto do Hamill fala sobre como, na turbulência dos anos 60, o Dylan conseguiu fazer uma poesia diferente, simples, verdadeira. E como sua arte resistiu ao tempo, por um motivo único: é bonita. Aqui vai um pedacinho do texto do Hamill. E viva Dylan e as respostas que sopram ao vento.

*

Pintores deixaram os cavaletes para rabiscar a sua inocência em paredes e manifestos; romances serviram como quartos arrumados para a ideologia.

Pobre America. Terra em que os poetas morreram.

Exceto Dylan.

De todos os nossos poetas, Dylan foi o que melhor pegou o mar turbulento e colocou em um copo. Desde cedo, ele nos avisou, ele nos deu voz, ele disseque a chuva pesada ia cair.

Então esqueça os intelectuais que reduzem a pó as rimas de Dylan. Lembre que ele nos deu voz. No tempo em que a nossa inocência morria para sempre, Dylan transformou esse momento em arte.

O milagre é que ele sobreviveu.